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Caiçaras de São Sebastião - SP - Foto de Nicia Guerriero - 1999 |
Caiçara é palavra cuja origem tupi, kaai’sa, pode significar “cerca de ramos", fortificação para vedar o trânsito” foi amplamente usada para designar as paliçadas de proteção às tabas indígenas. Em diversas regiões a mesma palavra tem outros significados, todos relacionados com o uso de varas e cerca: “cercado de madeira feito à margem do rio ou igarapé; armadilha para apanhar peixes, feita com ramos de árvores postos dentro d’água (cerco); abrigo ou esconderijo onde fica emboscado o caçador; pescador praiano”.(Houaiss, 2000).
Caiçara é também aquele que usa a cerca de
varas (no rio, na casa). Ser caiçara é também ser consciente de sua origem. “Os
primeiros brasileiros surgiram da miscigenação genética e cultural do
colonizador português com o indígena do litoral, ocorrida nas quatro primeiras
décadas, a qual formou uma população de mamelucos que rapidamente se
multiplicou (....) moldada, principalmente, pelo patrimônio milenar de
adaptação à floresta tropical dos Tupis-guaranis (....) gerando,
posteriormente, um contingente mestiço de índios, brancos e negros, que viria a
constituir o povo brasileiro” (Ribeiro, 1987). É dessa amálgama de raças que
surge o caiçara, típico representante do litoral paulista, e cada pescador
nativo se considera, orgulhosamente, seu digno representante. Verdade seja dita
que o termo “caiçara” tem, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, um
significado banal injustamente pejorativo: o caipira, matuto e vagabundo homem
da praia. Significado semelhante encontrou no município de Itanhaém para o termo
“tabacudo” - homem simples, abobalhado, sem instrução - como são chamados os caiçaras
dessa região. Este caráter pejorativo e também a humildade característica do
praiano fazem com que as populações caiçaras urbanas sofram certo preconceito
de classe social quanto à sua origem. O caiçara que Dona Iolanda Serra retrata
nas suas histórias é o mesmo homem que Seu Zé Carvalho (natural de Rio Verde,
no maciço da Juréia-Itatins) nos apresentou nas suas histórias de pescarias e
cercos. É uma gente simples, acostumada ao trabalho árduo de sol a sol, que se
rege pelas fases da lua para determinar o melhor momento para plantar, pescar,
caçar. Este povo praiano, em perfeita harmonia com o meio que o cerca,usa o mar
como mercearia e geladeira, coleta na mata todos os seus medicamentos, cultiva
a terra da planície litorânea fazendo-a produzir a contento apesar da “muita
areia e pouca fertilidade” dos solos da restinga. Traço cultural muito
interessante do caiçara é a sua habilidade no manejo da terra. Tal e qual seus
ancestrais indígenas, este povo observa preceitos antigos que garantem a
sustentabilidade do solo produtivo. Na cultura caiçara verificamos sempre o respeito
pela necessidade de “pousio” do solo – tempo de descanso prolongado para recuperação
da fertilidade -, o uso de todos os artifícios naturais para melhor preservar
os fatores produtivos; o plantio direto sobre o restolho, na coivara de tocos
que mantêm a umidade natural; a escarificação leve que não agride a cama da
semente. Estas medidas também são características em outras comunidades
tradicionais e - não se pode deixar de dizer – pertencem à rotina de
camponeses, pequenos agricultores e pescadores artesanais, enfim daqueles que
fazem a sua vida do dia-a-dia na força do braço, no trabalho artesanal. O povo
caiçara é assim: simples no viver, direto no sentir e no falar. Entre os mais
idosos ainda é forte a característica da “falta de ambição”: este
desprendimento de riquezas e de bens materiais, esta capacidade de viver bem em
condições extremas, o não prever ou se preocupar com o amanhã. Não que este
povo sofrido tivesse outras oportunidades melhores e as deixasse de lado por
puro desprendimento, não. Trata-se sim, de uma arte muito do caiçara, do
praiano, de viver bem com o tanto que a natureza lhe dá. Uma análise mais
aprofundada nos dirá que, com certeza, uma cultura assim estruturada não tem
competitividade suficiente para sobreviver às imensas pressões da sociedade
moderna. É neste embate que a cultura caiçara vai se perdendo, cortando o contato
íntimo com suas raízes autênticas – os ensinamentos indígenas que
possibilitaram a sobrevivência dos primeiros portugueses nas matas litorâneas; as
adaptações portuguesas da tecnologia necessária à manufatura de alimentos,
canoas e redes; o uso das ervas medicinais na cura de todos os males. As
características mais clássicas de um povoado caiçara - aqueles que existiam
neste litoral até as décadas de 1940-50 e ainda vivem na memória e nas saudades
dos mais idosos - eram as de um grupamento desordenado de casas, isoladas umas das
outras, escondidas entre a folhagem e protegidas do vento pela vegetação da
orla da praia. Na região estudada, até a década de 1960 os bairros mais
distantes do centro da vila ainda mantinham estas características. O Suarão, em
Itanhaém, era um bairro muito arborizado, com árvores nativas,intercaladas por
eucaliptos e árvores frutíferas, onde as crianças brincavam, entre as casas, em
terrenos amplos, varridos, sem distinção de limite de propriedade. As divisas
eram marcadas por uma árvore especial, mais alta, mais imponente, ou por um riacho
que atravessava o terreno. Assim nos conta também a pesquisadora Cristina Adams
que estudou inúmeras comunidades do litoral paulista: “Apesar da propriedade
ser privada, ela não era cercada e as trilhas permitiam o acesso de todos ao
espaço caiçara. A praia era o centro da vida caiçara e ponto de articulação com
o mundo exterior. O caiçara se distinguia pela praia a cujo grupo pertencia e a
solidariedade entre seus membros era importante fator de equilíbrio, mesmo não
sendo regulada por nenhuma organização ou instituição” (Adams, 2000). Neste
litoral de praias amplas e mar batido os núcleos de povoamento caiçara, frequentemente,
eram formados em locais estratégicos e de história antiga – Itanhaém, Peruíbe,
Iguape, Cananéia – pontos de referência no litoral sul do estado. Sempre havia
uma razão de ser para cada uma das comunidades caiçaras. Hoje, as praias, todas
povoadas, são cortadas por loteamentos e povoações sem tradição. A região
escolhida para esta pesquisa abrange os municípios de Itanhaém e Peruíbe com
suas praias longas - Praia Grande, Praia de Peruíbe, Praia do Una - e antigos
núcleos caiçaras: Vila de Itanhaém, Suarão, Camboriú, Rio Acima, Guaraú, Peruíbe,
Parnapoa, Vila Barra do Una, Praia do Una. Ilha Comprida: uma só praia-ilha, que
se alonga de norte a sul, com pequenas comunidades caiçaras escondidas na
proteção do jundu, nas margens do Mar Pequeno, entre elas, Juruvaúva,
Trincheira e Pedrinhas, que são relativamente recentes, do século XX, com 50 a
80 anos.
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Despescando o Cerco (caiçara) - Piaçaguera - SP - Foto Instituto Ernesto Zwarg |
O município
de Iguape, caiçara por excelência com as comunidades de: Vila de Iguape, Peropava,
Itimirim, Prelado, Vila Barra do Ribeira, Icapara, Mumuna, Jaerê, Subaúna; e o
município de Cananéia: a própria vila de Cananéia, Prainha e São Paulo Bagre e
a Ilhado Cardoso (Ipanema, Pereirinha, Cambriú, Foles, Ilha da Casca, Marujá,
Ariri). Estes nomes compõem o litoral sul do estado de São Paulo. São estas as
comunidades caiçaras mais representativas culturalmente. A riqueza cultural do
caiçara está na sua imensa capacidade de adequar conhecimentos antigos,
ancestrais até, de outros povos e origens muito distantes - europeia, indígena,
africana – gerando condições objetivas de sobrevivência para pequenas
comunidades em regiões de pouca riqueza e investimento institucional. Com
criatividade e habilidade o caiçara se amoldou ao meio sem grandes conflitos ambientais.
Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou antigos conhecimentos
indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e alimentares, aprimorou a técnica
do entalhe em madeira para construção de canoas e casas de moradia.Aplicou a
técnica agrícola mais apropriada ao clima e solo da região de restinga – solos
pobres e rasos – garantindo assim uma rotatividade maior de colheitas. Esta
técnica indígena, conhecida como coivara ou roça de toco, é amplamente
difundida em todas as regiões brasileiras onde predomina a agricultura de
subsistência. Basicamente a coivara é uma técnica de manejo do solo adaptada à
mais ou menos lenta rotatividade de cultivos, à queima do restolho para
reposição de minerais e controle de pragas e à manutenção da cobertura vegetal.
O uso da queima sem retirada dos restos promove um acréscimo da matéria
orgânica resultante do corte – folhagens, galhadas, tocos - e ajuda na
manutenção da drenagem mais adequada, impedindo ou dificultando os processos de
lixiviação do solo e na reposição de nutrientes a estes solos, naturalmente
pobres.Como povo constituído de lavradores-pescadores, o caiçara já pescava
para sua subsistência muito antes do advento do barco a motor (1930, de origem
japonesa), pois a pesca no litoral ainda é feita com aparelhos de origem tanto
indígena quanto portuguesa:as canoas de um pau só, cercos e covos (indígenas) e
as redes de lanço e arrasto (de origem portuguesa). Sua cultura pesqueira tem a
mesma idade das suas origens, pelo menos 300 anos de luta árdua pela
sobrevivência. Nas mãos caiçaras as terras litorâneas produziam tanto mais que
abasteciam os mercados de Iguape e Santos com seus produtos básicos – arroz,
mandioca, cestaria, cerâmica.Ao recontarmos os casos caiçaras e ao retratarmos
seus personagens identificamos características culturais desse povo. E desta
forma ajudamos a resgatar sua memória cultural e sua verdadeira História.
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Maricultora da Praia da Cocanha - Caraguatatuba - SP - foto de Luiz José - 2012
uma alternativa para a sobrevivência do Caiçara |
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Comunidade Caiçara da Ilha do Cardoso - Cananéia - SP - Foto Internet |
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Crianças segurando uma rabeca em construção, área rural entre
Iguape e Cananéia, 1982 (foto: Kilza Setti) |
Recebi o texto através de uma amiga, gostei e gotei mais ainda de ver minha foto no topo da matéria
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