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terça-feira, 24 de setembro de 2013

PUJANTE POVO CAIÇARA




Nicia Guerriero
Caiçaras de São Sebastião - SP - Foto de Nicia Guerriero - 1999

   Caiçara é palavra cuja origem tupi, kaai’sa, pode  significar “cerca de ramos", fortificação para vedar o trânsito” foi amplamente usada  para  designar  as paliçadas de proteção às tabas indígenas. Em diversas regiões a mesma  palavra tem outros significados, todos relacionados com o uso de varas e cerca: “cercado de madeira feito à margem do rio ou igarapé; armadilha para apanhar peixes, feita com ramos de árvores postos dentro d’água (cerco); abrigo ou esconderijo onde fica emboscado o caçador; pescador praiano”.(Houaiss, 2000).
   Caiçara é também aquele que usa a cerca de varas (no rio, na casa). Ser caiçara é também ser consciente de sua origem. “Os primeiros brasileiros surgiram da miscigenação genética e cultural do colonizador português com o indígena do litoral, ocorrida nas quatro primeiras décadas, a qual formou uma população de mamelucos que rapidamente se multiplicou (....) moldada, principalmente, pelo patrimônio milenar de adaptação à floresta tropical dos Tupis-guaranis (....) gerando, posteriormente, um contingente mestiço de índios, brancos e negros, que viria a constituir o povo brasileiro” (Ribeiro, 1987). É dessa amálgama de raças que surge o caiçara, típico representante do litoral paulista, e cada pescador nativo se considera, orgulhosamente, seu digno representante. Verdade seja dita que o termo “caiçara” tem, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, um significado banal injustamente pejorativo: o caipira, matuto e vagabundo homem da praia. Significado semelhante encontrou no município de Itanhaém para o termo “tabacudo” - homem simples, abobalhado, sem instrução - como são chamados os caiçaras dessa região. Este caráter pejorativo e também a humildade característica do praiano fazem com que as populações caiçaras urbanas sofram certo preconceito de classe social quanto à sua origem. O caiçara que Dona Iolanda Serra retrata nas suas histórias é o mesmo homem que Seu Zé Carvalho (natural de Rio Verde, no maciço da Juréia-Itatins) nos apresentou nas suas histórias de pescarias e cercos. É uma gente simples, acostumada ao trabalho árduo de sol a sol, que se rege pelas fases da lua para determinar o melhor momento para plantar, pescar, caçar. Este povo praiano, em perfeita harmonia com o meio que o cerca,usa o mar como mercearia e geladeira, coleta na mata todos os seus medicamentos, cultiva a terra da planície litorânea fazendo-a produzir a contento apesar da “muita areia e pouca fertilidade” dos solos da restinga. Traço cultural muito interessante do caiçara é a sua habilidade no manejo da terra. Tal e qual seus ancestrais indígenas, este povo observa preceitos antigos que garantem a sustentabilidade do solo produtivo. Na cultura caiçara verificamos sempre o respeito pela necessidade de “pousio” do solo – tempo de descanso prolongado para recuperação da fertilidade -, o uso de todos os artifícios naturais para melhor preservar os fatores produtivos; o plantio direto sobre o restolho, na coivara de tocos que mantêm a umidade natural; a escarificação leve que não agride a cama da semente. Estas medidas também são características em outras comunidades tradicionais e - não se pode deixar de dizer – pertencem à rotina de camponeses, pequenos agricultores e pescadores artesanais, enfim daqueles que fazem a sua vida do dia-a-dia na força do braço, no trabalho artesanal. O povo caiçara é assim: simples no viver, direto no sentir e no falar. Entre os mais idosos ainda é forte a característica da “falta de ambição”: este desprendimento de riquezas e de bens materiais, esta capacidade de viver bem em condições extremas, o não prever ou se preocupar com o amanhã. Não que este povo sofrido tivesse outras oportunidades melhores e as deixasse de lado por puro desprendimento, não. Trata-se sim, de uma arte muito do caiçara, do praiano, de viver bem com o tanto que a natureza lhe dá. Uma análise mais aprofundada nos dirá que, com certeza, uma cultura assim estruturada não tem competitividade suficiente para sobreviver às imensas pressões da sociedade moderna. É neste embate que a cultura caiçara vai se perdendo, cortando o contato íntimo com suas raízes autênticas – os ensinamentos indígenas que possibilitaram a sobrevivência dos primeiros portugueses nas matas litorâneas; as adaptações portuguesas da tecnologia necessária à manufatura de alimentos, canoas e redes; o uso das ervas medicinais na cura de todos os males. As características mais clássicas de um povoado caiçara - aqueles que existiam neste litoral até as décadas de 1940-50 e ainda vivem na memória e nas saudades dos mais idosos - eram as de um grupamento desordenado de casas, isoladas umas das outras, escondidas entre a folhagem e protegidas do vento pela vegetação da orla da praia. Na região estudada, até a década de 1960 os bairros mais distantes do centro da vila ainda mantinham estas características. O Suarão, em Itanhaém, era um bairro muito arborizado, com árvores nativas,intercaladas por eucaliptos e árvores frutíferas, onde as crianças brincavam, entre as casas, em terrenos amplos, varridos, sem distinção de limite de propriedade. As divisas eram marcadas por uma árvore especial, mais alta, mais imponente, ou por um riacho que atravessava o terreno. Assim nos conta também a pesquisadora Cristina Adams que estudou inúmeras comunidades do litoral paulista: “Apesar da propriedade ser privada, ela não era cercada e as trilhas permitiam o acesso de todos ao espaço caiçara. A praia era o centro da vida caiçara e ponto de articulação com o mundo exterior. O caiçara se distinguia pela praia a cujo grupo pertencia e a solidariedade entre seus membros era importante fator de equilíbrio, mesmo não sendo regulada por nenhuma organização ou instituição” (Adams, 2000). Neste litoral de praias amplas e mar batido os núcleos de povoamento caiçara, frequentemente, eram formados em locais estratégicos e de história antiga – Itanhaém, Peruíbe, Iguape, Cananéia – pontos de referência no litoral sul do estado. Sempre havia uma razão de ser para cada uma das comunidades caiçaras. Hoje, as praias, todas povoadas, são cortadas por loteamentos e povoações sem tradição. A região escolhida para esta pesquisa abrange os municípios de Itanhaém e Peruíbe com suas praias longas - Praia Grande, Praia de Peruíbe, Praia do Una - e antigos núcleos caiçaras: Vila de Itanhaém, Suarão, Camboriú, Rio Acima, Guaraú, Peruíbe, Parnapoa, Vila Barra do Una, Praia do Una. Ilha Comprida: uma só praia-ilha, que se alonga de norte a sul, com pequenas comunidades caiçaras escondidas na proteção do jundu, nas margens do Mar Pequeno, entre elas, Juruvaúva, Trincheira e Pedrinhas, que são relativamente recentes, do século XX, com 50 a 80 anos.

Despescando o Cerco (caiçara) - Piaçaguera - SP - Foto Instituto Ernesto Zwarg

   O município de Iguape, caiçara por excelência com as comunidades de: Vila de Iguape, Peropava, Itimirim, Prelado, Vila Barra do Ribeira, Icapara, Mumuna, Jaerê, Subaúna; e o município de Cananéia: a própria vila de Cananéia, Prainha e São Paulo Bagre e a Ilhado Cardoso (Ipanema, Pereirinha, Cambriú, Foles, Ilha da Casca, Marujá, Ariri). Estes nomes compõem o litoral sul do estado de São Paulo. São estas as comunidades caiçaras mais representativas culturalmente. A riqueza cultural do caiçara está na sua imensa capacidade de adequar conhecimentos antigos, ancestrais até, de outros povos e origens muito distantes - europeia, indígena, africana – gerando condições objetivas de sobrevivência para pequenas comunidades em regiões de pouca riqueza e investimento institucional. Com criatividade e habilidade o caiçara se amoldou ao meio sem grandes conflitos ambientais. Convivendo com a Mata Atlântica, o caiçara recuperou antigos conhecimentos indígenas sobre o uso das plantas, medicinais e alimentares, aprimorou a técnica do entalhe em madeira para construção de canoas e casas de moradia.Aplicou a técnica agrícola mais apropriada ao clima e solo da região de restinga – solos pobres e rasos – garantindo assim uma rotatividade maior de colheitas. Esta técnica indígena, conhecida como coivara ou roça de toco, é amplamente difundida em todas as regiões brasileiras onde predomina a agricultura de subsistência. Basicamente a coivara é uma técnica de manejo do solo adaptada à mais ou menos lenta rotatividade de cultivos, à queima do restolho para reposição de minerais e controle de pragas e à manutenção da cobertura vegetal. O uso da queima sem retirada dos restos promove um acréscimo da matéria orgânica resultante do corte – folhagens, galhadas, tocos - e ajuda na manutenção da drenagem mais adequada, impedindo ou dificultando os processos de lixiviação do solo e na reposição de nutrientes a estes solos, naturalmente pobres.Como povo constituído de lavradores-pescadores, o caiçara já pescava para sua subsistência muito antes do advento do barco a motor (1930, de origem japonesa), pois a pesca no litoral ainda é feita com aparelhos de origem tanto indígena quanto portuguesa:as canoas de um pau só, cercos e covos (indígenas) e as redes de lanço e arrasto (de origem portuguesa). Sua cultura pesqueira tem a mesma idade das suas origens, pelo menos 300 anos de luta árdua pela sobrevivência. Nas mãos caiçaras as terras litorâneas produziam tanto mais que abasteciam os mercados de Iguape e Santos com seus produtos básicos – arroz, mandioca, cestaria, cerâmica.Ao recontarmos os casos caiçaras e ao retratarmos seus personagens identificamos características culturais desse povo. E desta forma ajudamos a resgatar sua memória cultural e sua verdadeira História.

    
Maricultora da Praia da Cocanha - Caraguatatuba - SP - foto de Luiz José - 2012
uma alternativa para a sobrevivência do Caiçara 



Uma foto no Flickr
Comunidade Caiçara da Ilha do Cardoso - Cananéia - SP - Foto Internet



Crianças segurando uma rabeca em construção, área rural entre
Iguape e Cananéia, 1982 (foto: Kilza Setti)

Um comentário:

  1. Recebi o texto através de uma amiga, gostei e gotei mais ainda de ver minha foto no topo da matéria

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