Autor: Anne-Marie Chartier, Isabel
Cristina Alves da Silva Frade,
Instituição: Laboratoire de
Recherche Historique Rhône-Alpes / École Normale Supérieure de Lyon/França,
Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG / Faculdade de Educação - Centro de
Alfabetização, Leitura e Escrita-CEALE,
(Tradução de Ceres Leite Prado)
A relação
entre a oralidade e a escrita é tema de estudo de várias áreas de conhecimento
e, dependendo da abordagem escolhida, esses termos podem aparecer em uma
relação de oposição ou de integração. A oposição entre escrita e oralidade foi
utilizada como a grande divisão que separa as sociedades históricas e
pré-históricas, civilizadas e selvagens. Os etnólogos que estudaram os costumes
ameríndios, africanos e dos habitantes da Oceania mostraram que a narrativa
mítica sempre prevaleceu sobre a análise lógica, os rituais de iniciação sobre
as transmissões formais, o ver fazer e o ouvir dizer sobre o procedimento
científico. Contudo, a crença de que a oralidade induziria a um pensamento
pré-lógico deixou de ser dominante após o fim do colonialismo. A Psicologia,
por sua vez, descreveu a gênese das funções psicológicas e simbólicas,
analisando como o discurso oral de uma criança se transforma em discurso
interior, isto é, em pensamento. Esse processo acontece tanto com crianças que
vivem em sociedades ágrafas (sem escrita) quanto com crianças que convivem
cotidianamente com a escrita. Já a Sociologia analisou a face oculta da cultura
escolarizada, os saberes inscritos em redes de poder, a violência simbólica das
classificações eruditas vinculadas exclusivamente ao domínio da escrita.
A
existência da escrita acarreta várias consequências na construção de registros,
na mudança de lugares de poder e nos sistemas de funcionamento da sociedade. A
escrita modifica o sistema jurídico (contrato escrito versus palavra dada),
confere à pessoa instruída autoridade sobre o iletrado –, mas não anula as
culturas populares em que persistem tradições orais e transmissões práticas. A
oposição popular/erudito, que reduz a cultura escrita aos discursos teóricos
mais formais, esquece que os letrados também falam e que, simultaneamente ao
uso da escrita, a oralidade é uma modalidade fortemente presente nas interações
sociais.
A oposição
oralidade/escrita aponta não só as distâncias e transferências entre a voz e a
letra, mas também sua coexistência instável nas diversas interações sociais que
praticamos. As novas mídias que circulam na sociedade e na escola mesclam
recursos orais, verbais e visuais, colocando em questão as grandes divisões
entre o que constitui as especificidades da escrita e as da oralidade. As
mídias audiovisuais nos habituam a considerar como oral o que é uma escrita
falada: apresentadores de rádio e televisão leem textos previamente elaborados;
palestrantes e conferencistas também preparam suas falas por escrito, mas é
preciso dar a esses usos da palavra a aparência de uma expressão oral
espontânea.
A escola
trabalha com uma cultura escrita, com dispositivos que são organizados pela
escrita, como livros, cadernos, fichários, quadros e tabelas. Os escritos que
circulam nesses materiais acabam conduzindo a um modo de se expressar e pensar
que é nutrido pelo modelo escrito e pelos poderes da escrita. No entanto, a
escola é, além disso, espaço de encontro de culturas da oralidade, quando os
alunos produzem textos orais de sua tradição familiar e de seus grupos de
convivência, quando diferentes falares convivem no espaço escolar, quando
muitos conhecimentos são transmitidos pela via da oralidade. A presença de
escritos na vida social ou escolar e as tecnologias têm modificado as
fronteiras entre a escrita e a oralidade: fala-se a distância (por telefone), a
pessoas ausentes (recados na secretária eletrônica); dialoga-se por escrito
(através de emails, chats, tweets). O oral passa a deixar seus traços em
registros escritos e os numerosos escritos podem ser efêmeros como a fala. A
grande diferença entre os modos de funcionamento oral e escrito deve ser
relativizada quando as sociedades se tornam letradas. Além disso, a existência
da escrita não é marco para estabelecer o fim de algumas práticas sociais que
ocorrem numa cultura típica da oralidade.
Referências
bibliográficas:
BOURDIEU,
P. A distinção: critica social do julgamento.Porto Alegre: Zouk. 2013.
GOODY,
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LEVI-STRAUSS,
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VIGOTSKY,
L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. (Coleção
Psicologia e Pedagogia)